top of page
Nuvens no céu
telhado.gif
Logo 2.png

Sob O Mesmo Teto

Retratos da violência doméstica

Editorial

Editorial

00:00 / 03:27

A violência já é por si um problema estrutural da sociedade brasileira, uma rachadura no nosso sistema social que nos persegue todos os dias. Ela se expande e alcança níveis incalculáveis, e tal como problema de saúde pública causa danos reais e se torna obstáculo para o desenvolvimento sociopolítico e econômico do Brasil. E se trouxermos essa problemática para a perspectiva da violência doméstica, vamos perceber que os prejuízos são ainda maiores.

Quando decidimos falar sobre violência contra a mulher no especial, não havíamos nos dado conta ainda da profundidade deste tema. Percebemos, claro, a importância de abordar o assunto em tempos de isolamento social, mas tínhamos expectativas diferentes sobre os resultados obtidos. Ao consultarmos os órgãos oficiais, encontramos números em queda em comparação a 2019, antes do surgimento do coronavírus. Todas as pesquisas e os dados referentes aos atendimentos só nos mostraram declínio nas curvas de violência doméstica que desde 2016 vinham crescendo. Perceber que os registros haviam diminuído na pandemia era o cenário ideal, seria uma vitória a celebrar, mas estávamos enganados.

A subnotificação é crescente e real, uma vez que os registros realizados nos órgãos de proteção não refletem a realidade. Inúmeros são os fatores que submetem as mulheres a diferentes tipos de agressão e as desencorajam a registrar suas denúncias, ainda que tenham possibilidade de fazê-lo.

Entendemos que a pandemia de Covid-19 estaria apenas mascarando as estatísticas e revelando uma conjuntura ainda mais difícil para a vida da mulher. Com a apuração, apesar das dificuldades de nos aproximarmos de nossas fontes devido ao isolamento social, nossa trajetória foi marcada por muitos momentos de reflexão, dor e solidariedade. Através das vídeo chamadas, ouvimos e sofremos com os relatos de cada mulher entrevistada, que nos deram a honra de conhecer suas histórias e corajosamente falaram, contribuindo para dar visibilidade ao tema.

Por isso e por tamanha importância de abordar este tema ainda latente no Brasil, nasce SOB O MESMO TETO, um retrato jornalístico sobre a mulher e a convivência com o agressor, sobre as formas de violência que lhe acomete, sobre as dificuldades de denúncia e sobre a luta contra o feminicídio. Todas as mulheres apresentadas neste especial tiveram nomes e vozes modificados para manter o sigilo sobre as identidades.

Combater a violência doméstica é responsabilidade social de todos, e por termos conhecido ainda mais as nuances desta problemática nós assumimos o papel de denunciar aqui este crime indefensável. Esperamos que você, leitor, aprecie esta série de reportagens que construímos especialmente para as mulheres, e que você se liberte de qualquer preconceito ou pré-julgamento que possa existir, para acompanhar, ler e ouvir de coração aberto quem precisa falar.

Isolamento social e o convívio com o agressor

O drama da violência doméstica no período de pandemia pode causar subnotificações que escondem os números reais do problema

por Hanna Abrante

00:00 / 13:35
undraw_social_distancing_2g0u (1).png

Como problema de saúde pública e violação dos direitos humanos, a violência contra a mulher tem sido praticada indiscriminadamente no ambiente doméstico, invisível pelo espaço privado e silencioso pelas relações familiares. Para a maioria das pessoas, quarentena pode ser sinônimo de proteção devido ao coronavírus, mas para muitas mulheres é um grande perigo estar ao lado do agressor, vivendo em seu próprio lar, 24 horas com ele.

Atualmente, com a pandemia de Covid-19, a violência doméstica se tornou uma pauta cada vez mais discutida e preocupante no cenário brasileiro. Ainda que o isolamento social seja a principal maneira de barrar o avanço do novo coronavírus no Brasil, ele pode favorecer a subnotificação de casos e dificultar a realidade das mulheres que sofrem violência.

 

Conforme a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS), em 2020 foram registradas 18.903 vítimas de violência doméstica - uma queda de 17% em relação a 2019, quando houve 22.760 registros. Ao medo e à resistência da vítima em denunciar, soma-se a dificuldade de contato com as instituições de proteção à mulher no período de pandemia. Isso pode ocasionar o aumento de subnotificações que justificam também o decréscimo nos números registrados no estado.

As medidas protetivas concedidas pelo Tribunal de Justiça também diminuíram. O 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Fortaleza registrou em 2020 o total de 3.917 concessões, número que também representa um decréscimo comparado a 2019, que registrou 5.752 medidas concedidas. Mas como explicar que a baixa de casos pode não refletir o real cenário vivido pelas mulheres cearenses?

 

De acordo com Rosa Mendonça, juíza titular do 1º Juizado, essa redução se dá pela convivência da mulher com o agressor no período de pandemia. “Ela está vivendo 24h com ele, no mesmo ambiente, com muito estresse. Às vezes não tem acesso ao telefone porque ele está vigiando, ou não possui o pacote de dados onde possa fazer a denúncia, não tem nem sequer como fazer uma ligação. Por isso, todas essas dificuldades fizeram com que houvesse uma redução no número de denúncias”, afirma a juíza.

 

Para a delegada da Polícia Civil do estado, Rena Gomes, os indicadores sobre registro de casos realizados pelos órgãos de proteção não refletem a violência atual. “Infelizmente há um reflexo para a subnotificação. Muitas mulheres não têm acesso às leis, às redes sociais, aos meios de internet, e elas se sentem por vezes mais seguras em ir à delegacia para fazer a denúncia, mas neste momento de isolamento social os indicadores em queda mostram a dificuldade das mulheres em denunciar”, declara.

Regiane, 35 anos, é uma dessas vítimas. Trabalhando em home office desde a chegada do novo coronavírus, a convivência com o irmão usuário de drogas a tornou alvo de agressões físicas e psicológicas. 

 

“Eu não compactuo com o estilo de vida dele, então ele tem muita raiva de mim. Em um episódio, meu irmão correu para pegar uma faca na cozinha e me atingir. Tentei me defender, joguei álcool nos olhos dele e quando o derrubei, ele me chutou”, afirma. 

 

Regiane confessa ter mudado alguns hábitos em casa, por receio de ser surpreendida. Durante o trabalho, passou a fechar a porta do quarto para executar as atividades no computador.

 

Em um episódio, quando saiu para pedalar, apressou os passos ao avistar o agressor por perto. “Eu tenho medo porque eu não sei com quem ele fala, se alguém vai dar algum objeto perfurante pra ele, entendeu? Então, eu não confiava, eu tinha medo”, relata.

 

O primeiro caso de violência aconteceu no começo de 2020, mas Regiane só realizou a denúncia em setembro do mesmo ano, isso porque a mãe pedia para que ela não ligasse para a polícia, embora também sofresse as agressões. 

 

Hoje, o irmão de Regiane está em uma clínica de reabilitação. Quando ele estiver em contato com a família novamente, será necessária uma decisão conjunta. A mãe não respeita a decisão da filha de se afastar.

 

Escute o relato de Regiane.

Antes mesmo da pandemia, uma pesquisa acadêmica publicada em 2017 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro já mostrava que o contexto de isolamento pode ser uma ferramenta usada pelo agressor para enfraquecer a rede de apoio da mulher, que é afastada do seu convívio social.

 

O estudo revelou que:

Diante da restrição de liberdade imposta pelo parceiro, as mulheres mostraram dificuldades em expressar suas necessidades;

Dentre as 20 mulheres entrevistadas, apenas seis (30%) procuraram unidades de saúde e apresentaram sintomas consequentes da violência vivenciada;

Essas mulheres revelavam suas queixas mas não expressavam a origem dos sinais e sintomas consequentes da violência causada pelo parceiro.

Em isolamento, além do aumento no tempo de convivência ficando em casa, outros fatores podem tensionar as relações domésticas, como a diminuição da renda familiar em razão do desemprego, a suspensão de atividades laborais e o aumento no consumo de bebidas alcoólicas - razões que são consideradas causas estruturais da sociedade e específicas para a violência, reforçando a misoginia depreciativa ao feminino.

Números preocupantes

De acordo com o Atlas da Violência de 2020, material publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Governo Federal, só em 2018 foram assassinadas 4.519 mulheres no Brasil, número que representa uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil habitantes do sexo feminino. Isso significa dizer que a cada duas horas uma mulher foi assassinada no país.

 

Os números já eram espantosos antes da pandemia. Na mesma pesquisa, o Ceará pontuou uma taxa de 10,2 homicídios para cada 100 mil mulheres - o que representa o dobro da média nacional e a segunda taxa mais alta em todo o Brasil no ano de 2018, perdendo apenas para Roraima, com 20,5.

Os registros de violência enquadrados na Lei Maria da Penha também são alarmantes. Trazendo a perspectiva para a visão local, Fortaleza, capital do Ceará, é a cidade do estado com o maior número de registros de Violência Doméstica nos últimos 10 anos. Conheça abaixo o ranking dos municípios que possuem o maior número de ocorrências no estado:

Mulheres que apoiam mulheres

Mesmo após os quase 15 anos de vigência da Lei Maria da Penha, a oferta de proteção e apoio às mulheres vítimas de violência doméstica pode ser ainda insuficiente. Para assegurar que essa lei seja um instrumento eficaz de proteção às vítimas, os programas praticados pelo Ceará contam com a assistência da Casa da Mulher Brasileira, um espaço de acolhimento e atendimento humanizado que atua em parceria com os serviços especializados da rede de atendimento no estado, como a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, Casa-Abrigo, a Defensoria, o Juizado e demais parceiros.

Ainda que Fortaleza disponha dessa rede de proteção à mulher, projetos voluntários que percebem a necessidade de amparo às vítimas ganham destaque no período de isolamento da Covid-19. É o caso da Associação Marta, um grupo voluntário que conta com uma equipe essencialmente feminina para transmitir a conscientização sobre os direitos das mulheres. Com a pandemia, a associação trouxe o projeto Marta Escuta, uma iniciativa gratuita que oferece atendimento jurídico e psicológico através do Instagram.

 

Veja a seguir a entrevista realizada com as diretoras Damares Halley e Lara Luna, da Associação Marta:

maria da penha.jpg

Curiosidade

Quem foi Maria da Penha?

Deslize o mouse.

O nome Maria da Penha se refere à farmacêutica, natural do Ceará, que persistiu e lutou incansavelmente até ver seu agressor condenado. Sofrendo inúmeras violências em 1983, Maria da Penha ficou paraplégica após o marido tentar matá-la com um tiro de espingarda. Mesmo criando coragem para denunciá-lo, ela se deparou com um obstáculo que muitas mulheres vítimas de violência sofrem nesses casos: a incredulidade por parte da justiça. Sua denúncia somente teve efeito em 2002, quando o Estado brasileiro foi condenado por negligência e omissão na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, as leis e políticas públicas brasileiras foram reformuladas para atender de forma eficaz aos casos de violência doméstica.

undraw_creative_woman_v415.png

Outro projeto que faz diferença é o Rosa Viriato, uma rede de apoio que incentiva o redescobrimento social e o empreendedorismo entre mulheres no bairro Jangurussu. O grupo tem como objetivo estimular o empoderamento feminino e promover a ação empreendedora, integrando atividades como feiras gastronômicas e oficinas de artesanato. “No início o objetivo era trabalhar somente com artesãs, mas ganhou uma grande proporção e nós vimos a necessidade de incentivar a emancipação de mulheres que passam pelo problema de violência doméstica”, afirma Andreia Oliveira, agente de cidadania e coordenadora voluntária do projeto.

 

O projeto busca estimular a independência financeira entre mulheres e também percebe como a pandemia pode agravar a situação de violência doméstica. “O problema do desemprego, por exemplo, que aumentou com a chegada da Covid-19, acaba fazendo com que essas mulheres no dia a dia tenham dificuldades financeiras que geram conflitos de relacionamento”, conta Andreia.

Moradora do bairro São Cristóvão, Marília ia a pé para as feirinhas e cursos do Rosa Viriato. Ela explica que foi com o apoio de uma amiga, de Andreia e das atividades do projeto que conseguiu ter as primeiras experiências profissionais. Antes, Marília não teve oportunidade de se inserir no mercado de trabalho devido ao relacionamento.

 

“Eu era abusada, espancada, praticamente massacrada, por assim dizer. E hoje, graças a Deus, eu posso dizer que eu virei uma página. Meus filhos também sofreram muito com isso, por conta que eles presenciavam muita coisa feia, feia que eu digo no sentido de eles verem a mãe apanhando e não poder fazer nada. Todos eles menores de idade”. Assim ela começa a contar, com voz embargada, os episódios de violência presentes desde os 14 anos de idade, quando iniciou o relacionamento. A sua adolescência foi dedicada a cuidar dos filhos. Durante muitos anos privada de ter bens materiais, já que o marido só garantia o sustento dos filhos, foi com um telefonema para uma amiga que ela buscou adquirir a própria renda, oferecendo serviços como trabalhadora doméstica. As tentativas de estudar também foram afetadas devido às violências.

 

“Eu sou artesã, dona de casa com orgulho”, diz Marília, que hoje está à frente de uma lojinha que montou em casa, atividade que ainda consegue realizar mesmo com os problemas de saúde. Com o primeiro salário, ainda teve o próprio trabalho invalidado com mais uma agressão.  Após o contato com o Rosa Viriato, ela fala: “hoje graças a Deus eu sou uma mulher independente. Não preciso dele pra nada. Pra nada.”

 

Marília ainda convive com o agressor em casa. Durante mais de 30 anos, com ocorrências de ameaças de morte, dentre as quais ele possuía um revólver, ela já chegou a se separar algumas vezes, já tendo morado no interior do Estado. Hoje, fala que a relação mudou, e que ele chega a ajudá-la; algumas vezes, com caronas para o projeto. “Como eu disse à Andreia, é uma ferida não cicatrizada”. "Não tinha perdão que perdoasse as feridas e as marcas que eu carrego", finaliza.

 

Escute o que Marília fala a seguir.

HANNA
Imagem-Aspas-PNG-1024x1024.png
undraw_heartbroken_cble.png
frase hanna.png
frase hanna.png
PEDRO

"Eu só estou sendo forte porque eu tenho o meu filho"

Para as mulheres que vivenciaram a violência doméstica, os danos à saúde mental são os mais severos possíveis. Dados de perfil dos atendimentos demonstram aspectos sobre quem denuncia

por Pedro Victor Lacerda

00:00 / 19:44

Ao longo de dois meses, a equipe de reportagem buscou ouvir histórias de mulheres que foram atravessadas por um flagelo em comum: o ciclo da violência doméstica. O aumento da tensão, o ato da violência em si e o arrependimento do agressor são as três fases que caracterizam os episódios de agressões.

 

É o que explicam duas especialistas ao especial SOB O MESMO TETO. A psicóloga e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Sociedade (LAEpCUS/Unifor), também integrante da Associação Marta, Priscilla Faheina, descreve que na primeira fase surgem xingamentos e ameaças de agressão.

 

Na segunda fase, há uma “explosão” para o ato da violência, em qualquer um dos seus cinco tipos, como define a Lei Maria da Penha: moral, psicológica, física, sexual e patrimonial.

 

Daciane Barreto, coordenadora da Casa da Mulher Brasileira (CMB-CE), comenta o “pseudo-arrependimento” dos agressores, caracterizando a terceira fase do ciclo. Eles começam a demonstrar carinho que, dependendo das condições sociais, é acompanhado de presentes. “É o que a gente chama de lua de mel; essa lua de mel é muito pequena, [em] seguida volta tudo novamente. E aí deságua no feminicídio, que é o ápice da violência. Aí sim, algumas que nunca receberam flores, recebem neste dia, em função do ceifamento da sua vida”, alerta.

 

Priscila Faheina destaca o adoecimento psíquico causado pela violência doméstica. Ainda sobre a terceira fase, com os pedidos de desculpa do agressor, há também a culpabilização da mulher. Muitos agressores utilizam o mecanismo de provocar culpa, e a mulher se questiona se ela mesma seria responsável pela agressão.

 

Confira, a seguir, o que diz a psicóloga e pesquisadora:

undraw_ethereum_desire_wy1b.png

Com todos os processos de adoecimento no relacionamento violento, Priscilla descreve que a mulher passa por uma “dessubjetivação”. Ela se torna um objeto de violência do agressor. Soma-se à culpabilização a perda de propriedade sobre o próprio relacionamento e seus limites. “Ela fica completamente refém a um outro que diz dela. Que diz quem ela é, que diz o que aconteceu, que diz como é que foi essa discussão”, avalia.

 

Os números do Centro de Referência à Mulher em Situação de Violência Francisca Clotilde (CRM) revelam a prevalência dos abusos psicológicos. Entre 2019 e 2020, o CRM atendeu 4.591 mulheres. Nesse período, foram notificadas 3.674 agressões psicológicas, representando 77,7% dentre o número total de casos atendidos. 

 

Somente no primeiro mês deste ano, já foram 107 agressões psicológicas registradas. Os dados também apontam uma redução dessas agressões entre 2019 e 2020, período afetado pela quarentena. O Centro funciona desde 2006, e desde 2018 integra a CMB-CE.

Segundo Priscilla Faheina, a violência psicológica geralmente antecede todos os outros tipos de violência. Ainda mais grave, essa forma de agressão é ambígua e de difícil reconhecimento: “muitas vezes, ele [o agressor] faz um xingamento e depois um elogio, ele tem um ato extremamente machista e opressor, e depois vai lá e dá uma rosa e dá um beijo, dá um abraço. Diz que é assim mesmo, que todo homem faz isso e que isso é normal. Então, é muito sutil, e essa sutileza, às vezes, vai fazendo com que a gente se perca um pouco dentro desse tipo de violência”.

 

SOB O MESMO TETO abordou o assunto com Marcela, cuja filha viveu uma relação abusiva durante um ano. O agressor se desculpava após os episódios de violência física, dificultando o fim do relacionamento. “Ela continuou, porque cada beliscão, cada mordida, era um pedido de desculpas. Entendeu? É complicado”, lembra Marcela, complementando durante a entrevista que a filha era chamada de “louca”.

 

Priscilla Faheina esclarece que a maioria das mulheres leva de 10 a 20 anos para romper com a relação de violência, o que causa danos drásticos e compromete a saúde psíquica. Ela cita como consequência três diagnósticos principais após os grandes episódios de violência: ansiedade, depressão e o transtorno de pânico.

“Muitas vezes, essas mulheres ficam extremamente deprimidas, culpabilizadas, principalmente quando envolve filho, quando ela já tem frutos aí desses relacionamentos. Então, elas se sentem culpadas, muitas vezes, por separar o pai dos filhos. Isso mexe com a maternidade delas, isso mexe com a feminilidade dessas mulheres. Muitas vezes, elas ficam extremamente amedrontadas de sair de casa, de se relacionar com outras pessoas” - Priscilla Faheina, psicóloga.

undraw_motherhood_7htu.png

Laura, 40, passou exatamente por esse processo. Mãe de uma criança de dois anos, ela conviveu durante alguns anos com o agressor e chegou a retirar uma queixa que resultaria na prisão dele. Tudo para não separar pai e filho. Ela se mudou para uma residência alugada – seu local de refúgio.

 

Mães, filhos e amparo

Chegando ao final da entrevista, Laura avisa ao telefone que vai enviar uma foto do filho à reportagem. Em alguns momentos da conversa, a criança brinca com tinta guache por perto da mãe, que narra episódios ainda muito marcantes na memória. Alguns minutos após o fim da ligação, chega uma mensagem com a foto de um menino "grandão" para a sua idade. "Meu príncipe".

 

Atualmente, entre plantões, Laura divide-se em dois empregos, para garantir que não fique “apertada” ou “passe necessidades” como antes. À noite é que retorna à casa após um longo expediente.

 

Enfermeira, atua na linha de frente do combate à pandemia de Covid-19 em uma UPA e em um hospital. Devido a uma reinfecção pelo coronavírus, precisou se distanciar do filho por 15 dias. Ele recebeu cuidados da avó, o que não era de sua vontade. A razão foi o afastamento que Laura teve com a família, que não lhe deu apoio enquanto estava no relacionamento violento.

 

"Eu só tô sendo forte, hoje eu já chorei também, porque eu tenho o meu filho, aí eu não posso abandonar, ele depende de mim", desabafa, pontuando diversas vezes os traumas deixados e as consequências emocionais que ainda lhe abalam. As agressões do ex-companheiro começaram ainda na gravidez. "Foi só um empurrão, né? Mas é muita coisa. Um empurrão e ele quebrou meu telefone", relembra. Em 21 de dezembro de 2017, Laura descobriu a gestação, contando que "aí virou meu pesadelo, porque eu pedi demissão de onde eu trabalhava".

 

Com as agressões, teve três de seus celulares quebrados, o que impossibilitou, em uma das ocasiões, a comunicação com a família. Durante um mês, Laura foi mantida em cárcere privado, no qual o agressor ficava com a chave da casa. O fim do período de reclusão acabou quando ela avistou um funcionário de um serviço de internet pela janela e pediu ajuda, conseguindo um celular pelo qual telefonou ao Disque Denúncia. Posteriormente, uma irmã lhe conseguiu um celular para se comunicar.

 

Mesmo já tendo registrado vários Boletins de Ocorrência anteriormente, Laura se encontra sem uma medida protetiva, que atribui à situação da pandemia de Covid-19. Escute o relato no áudio a seguir.

A percepção de Priscila Faheina, advinda de sua atuação profissional, é que a gravidez e o nascimento dos filhos são períodos críticos para as mulheres devido a picos de agressão de seus companheiros. Nessas condições, a atenção das mães ao novo integrante da família afeta o agressor, podendo causar gatilhos para novas violências.

 

Carla, 23, filha de Marcela, também teve como agressor o primeiro namorado. Os dois se conheceram na faculdade e começaram a interagir quando ela tinha 21 anos. Marcela o descreve como "um lobo vestido de cordeiro", porque demonstrava uma imagem de boa pessoa aos outros, mesmo com os abusos físicos e psicológicos infligidos a Carla, do começo ao fim da relação.

 

Ouça o que diz Marcela.

undraw_city_girl_ccpd.png

“A relação abusiva é muito pior psicologicamente do que fisicamente. A pessoa tem o poder da persuasão, ela faz com que você mesmo estando certo, esteja errada, e ela se calar”, detalha Marcela. A mãe relembra que começou a perceber as mudanças na filha e questionava o agressor, que não admitia as violências, marcadas também por mordidas no corpo de Carla, dizendo: “Não, isso é coisa minha”.

 

Carla é estudante universitária e trabalha no estágio em home office no quarto onde Marcela rememora os episódios dos últimos dois anos. Dedicada aos estudos e uma menina sensível, como descreve a mãe, com os danos à saúde mental, houve tentativa de suicídio. “Minha filha não tem mais o brilho que tem nos olhos”. A mãe precisou representá-la na justiça.

 

Na avaliação da juíza Rosa Mendonça, a violência psicológica é uma das mais graves por afetar a mente e a autoestima da mulher sem "deixar uma marca no corpo físico". "Não existe exame de corpo de delito da violência psicológica", complementa, ressaltando as sequelas causadas em mulheres que convivem com essas violações durante toda a vida e têm como consequência doenças físicas.

 

A juíza cita como exemplos hipertensão, diabetes, fibromialgia e reflexos na saúde mental, incluindo tentativas de suicídio, além de viver "eternamente tomando remédios tarja preta para poder se controlar e tentar levar a vida".

Onde está a violência

Das periferias aos condomínios de luxo, a violência doméstica se encontra em toda a sociedade, afirma a juíza Rosa Mendonça.

 

A visão de Daciane Barreto, coordenadora da Casa da Mulher Brasileira (CMB-CE), é a mesma: "uma coisa que a gente comenta é que a violência contra nós mulheres é perversamente democrática”; ela independe de classe social, raça, orientação sexual e de identidade de gênero, estando presente em todas as regionais de Fortaleza e em todos os municípios cearenses.

 

A delegada Rena Gomes  concorda que a violência é “muito democrática”, estando “presente em todos os espaços sociais, em todos os níveis culturais, infelizmente. Não só com relação à vítima, mas também com relação ao agressor".

 

Priscila Faheina completa ao dizer que a violência de gênero está muito enraizada em questões sociais, políticas e éticas. "A violência é muito sutil e está nas nossas relações", considera.

 

Mesmo com a “democratização” do problema, é possível traçar o perfil de quem busca atendimento, com base em números da Casa da Mulher Brasileira. Nessa entidade, as mulheres atendidas, em sua maioria, estão entre os 25 e 44 anos; autodeclararam-se pardas; são solteiras ou casadas ou estão em união estável; são cristãs; têm ou ensino fundamental incompleto ou o ensino médio concluído; recebem entre mais de meio salário até 3 salários ou não possuem renda.

Clique nos botões e conheça o perfil que é predominantemente atendido na Casa da Mulher Brasileira de acordo com os registros de atendimentos:

Se a violência doméstica afeta todas as mulheres, ela “evidentemente” atinge mais as que não possuem condições de se proteger, aponta a promotora de justiça e coordenadora do Núcleo Estadual de Gênero Pró-Mulher (Nuprom), Lucy Antonelli Rocha. O Nuprom tem como objetivo atuar, principalmente, de maneira extrajudicial, na promoção de políticas públicas para o público composto por mulheres que sofrem violência doméstica.

 

Lucy contextualiza que as “camadas mais populares” possuem um “viés mais acentuado” da violência doméstica, o que atribui à falta de assistência pelo poder público desde aspectos sociais aos educacionais, de lazer e trabalho: “em todos os aspectos que você possa imaginar”, destaca. “Então, a violência doméstica atinge, assim como toda violência urbana, as camadas mais pobres da nossa população”.

 

Damares Halley e Lara Luna, diretoras da Associação Marta, perceberam que a escolaridade e a dependência financeira eram dois fatores existentes dentre as mulheres que participaram do Marta Escuta. Elas procuravam a assessoria jurídica para colher informações sobre pensão alimentícia, e também escreviam de “uma forma mais simples”. No entanto, afirmam não ser possível traçar um perfil exato em função do contato ter acontecido de maneira remota.

 

Por outro lado, Priscilla Faheina diz que a prevalência de mulheres de classes econômicas mais baixas nas estatísticas deve ser vista com cuidado. Ela questiona: ou são as que mais sofrem violência ou por que outras mulheres não denunciam por vergonha moral e social. Para a psicóloga, são necessários outros estudos para chegar a "uma resposta um pouco mais fechada".

 

A socióloga e integrante do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem), Danielle Cruz, também evidencia a forma como o racismo e o machismo influenciam a violência contra a mulher. Ela cita pesquisas públicas como o Atlas da Violência. “Você não tem como descolar essas três dimensões: classe, raça e gênero. Porque os dados vão apontar que as negras são as que mais são assoladas e nos diferentes contextos de violência”, comenta.

 

O crescimento do assassinato de mulheres negras foi denunciado pelo dossiê “Feminicídio: a dor de contar mortes evitáveis | Ou sobre a (ir)responsabilidade do Estado na prevenção do assassinato de meninas e mulheres”, do Fórum Cearense de Mulheres e da Articulação Mulheres Brasileiras.

undraw_project_team_lc5a.png

Ausência de dados de perfil entre órgãos públicos

Nem todos os processos que circulam entre as delegacias, o sistema do Judiciário e o Ministério Público possuem as informações completas de perfil das mulheres. É o que explica Lucy Antonelli Rocha, ressaltando que esse problema se deve a uma grande rotatividade na procura pela delegacia. Segundo a promotora, há “muita dificuldade”, em razão do intenso movimento – e o resultado são dados não preenchidos já na parte inicial do processo.

 

“Então, nós temos uma luta muito grande para que a delegacia preencha todos os dados, inclusive de natureza racial, tanto da vítima quanto do agressor, de relação econômica, de condição econômica, de bairro, de relação familiar, de quantidade de filhos”, comenta.

 

A promotora diz ainda haver um “delay muito grande” para a chegada no Ministério Público dos inquéritos que se encontram nas delegacias. Veja o que ela fala.

SOB O MESMO TETO levou esse questionamento à diretora do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis, Rena Gomes. Ela nega o não preenchimento dos dados e a falta de informações de perfil das mulheres por parte da delegacia. A delegada afirma, ainda, que o sistema de informação policial é "muito complexo" e que possui "todos os dados, os perfis da vítima", que são informados no momento do preenchimento do Boletim de Ocorrência. E adiciona que estão sendo implementados, através da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (SUPESP), observatórios de monitoramento dos perfis.

 

"Os dados são preenchidos, os campos [do boletim] são preenchidos. O que eu acredito [é que] a dificuldade é de avaliação, e de, digamos assim, de estudo desses dados. O que a gente está trabalhando nesse sentido é reformular esse estudo através de observatórios com relação aos grupos vulneráveis", complementa a delegada.

 

Veja o que diz Rena Gomes sobre os dados advindos das delegacias.

Questionada novamente a respeito de processos que já estão em andamento no Judiciário, em que estão ausentes as informações de perfil, Rena Gomes diz que os dados são de declaração da mulher, sendo alguns campos de preenchimento não obrigatório.

 

A delegada adianta que está sendo implementado, também, um relatório de avaliação de risco para as mulheres em situação de violência.

 

Sobre o tratamento de dados e a atuação da delegacia, Rena Gomes defende que “o Ministério Público também pode fazer essa ação, ele pode também estudar esses dados, não depende só da polícia encaminhar esses dados. Então, assim, a gente tem que ver também qual a atribuição de cada instituição e cada instituição fazer o seu papel, né?”.

frase pedro.png
frase pedro.png
Imagem-Aspas-PNG-1024x1024_edited.png
undraw_Code_typing_re_p8b9.png
GUILHEME

O processo e a demora ao denunciar a violência

Disque 180, Delegacia da Mulher, medidas protetivas e robôs de WhatsApp: saiba como se proteger do agressor

por Guilherme Gomes

00:00 / 11:27
undraw_Add_files_re_v09g.png

Regiane, 35, mencionada anteriormente no início do especial por sofrer violência doméstica do próprio irmão, avalia sua experiência com a Delegacia de Defesa da Mulher como “decepcionante”. “Quando você está na Delegacia da Mulher, você não se depara só com o seu caso, você se depara com vários casos lá, você tem a oportunidade de observar. E aí eu vi vários casos lá de mulheres que estavam sendo violentadas pelo marido, tinha áudios gravados e parece que a mulher estava com três meses que estava tentando essa medida e ainda não tinha conseguido nada, mesmo com os áudios, mesmo ela sendo violentada, mesmo ele tendo batido nela na frente do filho de quatro anos e nada era feito, e tinha os áudios e tudo. Aí você vai meio que vai ficando, tipo assim.... Tipo, eu tô aqui, nada vai ser feito, não adianta de nada, né?”, relata.

 

O medo de denunciar é frequente dentre as vítimas de violência doméstica, pois há sempre a hipótese de que o agressor voltará após a punição (se houver) e continuará com as agressões, podendo resultar até em morte.

 

No entanto, a medida protetiva que Marcela conseguiu para a filha foi o que encerrou o ciclo de violência em que ela se encontrava. Sofrendo violências físicas e psicológicas em um relacionamento de um ano, a mãe só descobriu as agressões quando ouviu a filha no telefone relatar para a tia que “estava toda mordida”. “Só não quero que outras mulheres passem pela mesma coisa que eu passei. Aí é isso que eu quero dizer. Não se calem. Mesmo não querendo acreditar na Justiça. Porque a medida protetiva para ela deu certo. Ele se afastou, com a medida protetiva, se afastou”, conta. Marcela acrescenta que o agressor responde por dois processos (sendo um deles por lesão corporal) e um inquérito, e que já havia contratado duas advogadas para representá-lo no Tribunal. A filha dela, por sua vez, conta com a defesa da Defensoria Pública.

 

Embora se fale muito sobre a importância de se denunciar uma agressão, muitas mulheres não sabem como fazê-lo. A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 oferece escuta e acolhida qualificada às mulheres em situação de violência. O serviço registra e encaminha as denúncias aos órgãos responsáveis, além de informar sobre os direitos da mulher e também os locais mais próximos e apropriados para atender cada caso, como:

  • Casa da Mulher Brasileira;

  • Centros de Referência;

  • Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAMs);

  • Defensorias Públicas;

  • Núcleos Integrados de Atendimento às Mulheres, entre outros.

O serviço é gratuito e funciona 24h por dia, todos os dias da semana e em todo o território nacional. O Ligue 180 também permite o acompanhamento da denúncia após o informe dos dados de protocolo. A Central também atende pelo Telegram; basta procurar por “Direitoshumanosbrasilbot” na busca e conversar com uma pessoa da equipe de atendimento.

É importante ressaltar que qualquer pessoa pode denunciar uma violência, não somente a vítima, e que a ligação é totalmente anônima.

Outra alternativa para se denunciar é o aplicativo Direitos Humanos Brasil e o site da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O site possui atendimento por chat e também acessibilidade para a Língua Brasileira de Sinais. O Ministério também passou a atender pelo WhatsApp desde outubro do ano passado. Basta contatar o  número (61) 99656-5008. Uma resposta automática será enviada e em seguida o atendimento será feito por uma pessoa da equipe da central única dos serviços.

Ainda no próprio WhatsApp, o programa Você Não Está Sozinha do Instituto Avon disponibiliza um robô que auxilia mulheres a realizarem denúncias de agressão. Em parceria com Uber e Wieden+Kennedy, o serviço é discreto para não levantar suspeitas e evitar que a vítima corra mais risco. A depender dos casos e das respostas obtidas, o robô pode sugerir que a vítima vá ao hospital ou a uma Delegacia da Mulher. Nesse último caso, o Uber oferece um cupom para que a corrida seja feita gratuitamente. Para obter atendimento, o número a ser contatado é

(11) 94494-2415.

 

O meio convencional e mais eficaz de se realizar uma denúncia é registrando um Boletim de Ocorrência na delegacia. O recomendado é que a denúncia seja feita em uma Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM), mas qualquer unidade está apta para realizar o procedimento.

 

A vítima de violência doméstica ainda pode pedir a medida protetiva prevista pela Lei Maria da Penha. Feita a denúncia e concedida a medida, a delegacia instaura um inquérito policial, que posteriormente é encaminhado à justiça podendo ou não ser instaurado um processo criminal. Em casos de emergência, quando a mulher estiver sofrendo a violência naquele momento, qualquer pessoa pode e deve ligar para o 190, o número da polícia militar. Havendo o flagrante, o agressor é preso.

undraw_coming_home_52ir.png
undraw_judge_katerina_limpitsouni_ny1q.p

Em muitos casos, como o de Regiane, mencionado anteriormente, existe o fator da demora para a denúncia ser efetivada e alguma ação ser tomada pelos órgãos responsáveis, como a validação da medida protetiva. Geralmente são nesses momentos de espera em que o agressor volta a realizar as violências e os casos se agravam.

 

De acordo com Rosa Mendonça, juíza titular da 1ª Vara de Violência Doméstica, há uma série de fatores que justificam a demora do processo. Um deles é o cumprimento do mandado da medida protetiva pelos oficiais de justiça. Enquanto os juízes possuem 48 horas para decidir se cada medida protetiva será deferida ou não, os mandados se acumulam na central devido ao pequeno número de oficiais para cumpri-los. Outro fator é a revisão de um Boletim de Ocorrência com informações erradas ou insuficientes; nesse caso, a vítima precisa retornar à delegacia para contribuir com novas informações.

 

Se a demora para que uma medida protetiva seja cumprida desestimula mulheres a realizarem uma denúncia, outro caso recente pode revoltá-las. O caso de Mariana Ferrer chamou a atenção da mídia seja pela barbárie sofrida, seja pelo sentimento de injustiça. Mariana, modelo e blogueira, acusa o empresário André Aranha de tê-la drogado e estuprado em dezembro de 2018, em um camarim privado de uma festa. Na época, ela tinha 21 anos e era virgem. A perícia encontrou nas roupas de Mariana sêmen do empresário e sangue dela. André foi denunciado pelo Ministério Público por estupro de vulnerável.

 

No dia do julgamento, o advogado de defesa de André, Cláudio Gastão da Rosa Filho, exibiu fotos sensuais feitas por Mariana em seu trabalho de modelo e disse que jamais teria uma filha no “nível” dela. Ao vê-la chorar, respondeu: “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”. Você pode assistir à cena no YouTube. Por fim, André foi absolvido após o promotor de justiça, Thiago Carriço de Oliveira, concluir que se tratava de um “estupro doloso” – quando não se há intenção de estuprar.

 

“Qualquer coisa que aconteça de violência com aquela mulher, aquela mulher que deu causa. Nós vivemos nessa sociedade machista em sempre querer culpar a mulher. Com a violência doméstica, e com a Mariana também, não é muito diferente. Você veja que é uma questão tão complexa que muitas vezes… Tem as próprias mulheres que se culpam pela violência sofrida”, exemplifica Rosa Mendonça.

A fala da juíza toca em um ponto importante ao mencionar o machismo, tão presente na nossa sociedade. O machismo se classifica como um preconceito, demonstrado por falas ou ações, que se opõe a igualdade de direitos e oportunidades entre os gêneros, favorecendo os indivíduos do gênero masculino ao passo em que menospreza e oprime as do gênero feminino.

 

No dia-a-dia, pessoas machistas são aquelas que acreditam na existência de papéis somente masculinos, da mesma forma em que consideram mulheres inferiores em intelecto, força, capacidade e habilidade.

 

“Ao homem cabe trabalhar e cuidar da carreira profissional no espaço público, e às mulheres cabe cuidar da casa e dos filhos. Então esses valores que foram estabelecidos na modernidade com a consolidação da família burguesa, um modelo de família que é o homem, a mulher e filhos, vão ter um impacto muito forte aqui, porque nós fomos colonizados por pessoas que já traziam essas ideias”, comenta Danielle Cruz, professora e doutora em Sociologia. Ela ainda complementa dizendo que “são vários tipos de violências que historicamente as mulheres enfrentam por conta de uma herança desse modelo de sociedade patriarcal que faz com que uma parcela significativa da população masculina entenda que as mulheres são algo menor”.

 

O machismo está tão enraizado na sociedade que muitas vezes não é necessário que o homem culpe a mulher por alguma violência realizada; ela própria já faz isso. Essa ideia de que o homem está sempre certo faz com que muitas vítimas decidam não denunciar e, dessa forma, perpetuam o ciclo de violência por não rompê-lo. Danielle explica que, segundo dados do Núcleo de Enfrentamento a Violência Contra a Mulher da Defensoria Pública da Casa da Mulher Brasileira, existem indicadores que justificam o porquê das vítimas decidirem não denunciar, e o primeiro deles não é a dependência financeira, como muitos esperam, mas sim a emocional.

Atendimentos CMB - Versão para editar (1

Número de atendimentos na Casa da Mulher Brasileira por ano

Rena Gomes, delegada e diretora do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis da Polícia Civil, reitera a importância de se romper com a violência ao denunciar, pois a palavra da vítima, além de ser fundamental para o processo, conta com o entendimento dos profissionais de que esses crimes são realizados “entre quatro paredes, sem deixar testemunhas”.

 

Apesar de a Lei Maria da Penha ser um grande avanço na vida das vítimas, Rena ainda pondera que o trabalho de diminuição de casos está longe de acabar. “Nós avançamos muito na parte de repressão, na parte da rede de atendimento, mas na parte de desconstrução da cultura machista, da cultura de dominação, que é o vetor da violência doméstica contra a mulher, nós não conseguimos avançar”, avalia.

“A gente vai escutar muitos discursos da importância de se ter um homem em casa, de que você só é respeitada se você tiver um homem, que você só é respeitada se você tiver um marido, que você só se sente segura com uma presença masculina... Então tudo isso vai construindo uma relação de dependência emocional muito forte que faz com que aquela própria mulher se coloque o tempo inteiro na posição de vítima, e não perceba que ela também tem uma responsabilidade ao não romper com aquele vínculo”.

- Danielle Cruz, socióloga

Falar sobre violência doméstica, especialmente em contextos de pandemia nos quais vítima e agressor estão mais isolados do que nunca, é primordial para a divulgação de um conhecimento que pode salvar vidas. Saber sobre seus direitos e também conhecer histórias em que a vítima se desvencilhou do ciclo de violência geram esperança, tanto de um futuro com menos casos quanto de mais pessoas engajadas com a causa. Você não precisa ser mulher para lutar contra o feminicídio, muito menos ter boas condições financeiras para obter ajuda. Quanto mais pessoas se informarem e, principalmente, se desconstruírem de concepções machistas, mais será possível acreditar em um país com segurança para todos. “SOB O MESMO TETO”, com esta série de reportagens, espera ter contribuído para que sua casa, ao invés de uma prisão, volte a ser um lar.

undraw_late_at_night_23xk.png
frase gui.png
frase gui.png
Imagem-Aspas-PNG-1024x1024_edited.png
EXPEDIENTE

Expediente

Hanna.jpeg

Hanna Abrante

  • LinkedIn

Graduanda em Jornalismo na Universidade Federal do Ceará

Turismóloga

eu%201-01_edited.png

Pedro Victor Lacerda

  • instagram_edited

Graduando em Jornalismo na Universidade Federal do Ceará

Gui.png

Guilherme Gomes

  • instagram_edited

Graduando em Jornalismo na Universidade Federal do Ceará

Textos
Hanna Abrante, Pedro Victor Lacerda, Guilherme Gomes
Edição de Áudio e Vídeo
Pedro Victor Lacerda
Gráficos
Hanna Abrante
Diagramação e Design Gráfico
Guilherme Gomes
Orientação
Pedro Vasconcelos

Semestre 2020.2 / Fortaleza (CE), 16 de Abril de 2020

logos_edited.png
LogoPrexUFC_Vertical_Monocromatico.png
bottom of page